Menos vacas, menos produtores, mais leite
Aumento no número de vacas, investimento massivo em maquinários e mudança de sistema a pasto para gado confinado. Tudo isso vem refletindo no incremento da produtividade leiteira. O cenário vivenciado por Elias Spada, em Ibiraiaras, no Norte do Rio Grande do Sul, é um reflexo de como o setor leiteiro tem se moldado nos últimos anos. Spada, porém, admite que o cenário que vive não é igual para todos. Enquanto vê sua produção aumentar com adequações na propriedade, o empreendedor vê também muitos vizinhos que trabalhavam no setor desistirem da atividade por diversos motivos, entre eles, socioeconômicos.
A realidade de quem trabalha na produção leiteira está refletida na 6ª edição do Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no Rio Grande do Sul, apresentada pela Emater/RS-Ascar na 48ª Expointer, em setembro. Produzido pelo zootecnista, extensionista, assistente técnico estadual da Bovinocultura Leiteira e coordenador das pesquisas sobre a cadeia produtiva do leite pela Emater/RS-Ascar, Jaime Ries. O estudo aponta que a produção de leite no RS vem se mantendo estável, apresentando um leve aumento de 0,2% em relação ao último relatório, publicado em 2023, passando de 3,83 bilhões de litros para 3,84 bilhões por ano. Apesar disso, o número de propriedades rurais que produzem e comercializam leite cru para a indústria ou processam em agroindústria legalizada caiu de 33.019 em 2023 para 28.946 em 2025, uma redução de 12,3% no período.
Ainda segundo a Emater/RS-Ascar, há dez anos, quando o primeiro relatório foi feito, eram 84.199 estabelecimentos do setor no RS. O setor tem visto ainda uma redução do rebanho de gado leiteiro nos últimos dos anos. Apesar disso, a diminuição é menos expressiva que a do número de produtores. A queda de 3,5% representa 27.234 animais a menos, ou seja, de 769.812 vacas em 2023, passou para 742.578. Apesar disso, a produção se mantém por conta da especialização das propriedades que seguem no segmento, diz Ries.
Outro exemplo disso apontado no relatório é o número de vacas em cada propriedade, que dobrou nos últimos 10 anos, passando de uma média de 13,95 animais em 2015 para 25,65 em 2025. A produtividade no período também teve um crescimento exponencial, passando de um volume médio diário de 137,1 litros por dia por estabelecimento em 2015 para 363,8 litros em 2025.
“Isso faz com que o menor número de produtores, com um rebanho menor, consiga produzir a mesma quantidade de leite, basicamente. Então, a escala de produção está maior, o que significa que sai mais da atividade o produtor pequeno e entra mais o produtor grande”, frisou Ries.
Atualmente, 451 municípios gaúchos produzem leite para a industrialização, abrangendo mais de 28 mil estabelecimentos. Já outros 111 municípios possuem agroindústrias leiteiras legalizadas e 173 estabelecimentos. O extensionista ressalta, como gargalo da atividade leiteira gaúcha, o fato de que o Estado produz mais leite do que consome. “Hoje, de 40 a 50% do que é produzido aqui vai para outros estados. Precisamos investir em estratégias de logística e aumentar o consumo interno do leite”, completou.
Spada explica que, entre as alterações realizadas em sua propriedade nos últimos 10 anos estão a substituição de um sistema de animais criados a pasto pelo sistema de confinamento. Atualmente, a atividade é feita com 80 vacas em ordenha, com produção em média de 2,8 mil litros por dia, aproximadamente 35 litros por animal, dividida em três ordenhas diárias. Entretanto, ele destaca que o rebanho está em crescimento, com cerca de 180 animais ao todo, sendo muitos deles bezerras que vão entrar em produção nos próximos anos.
No lugar do pastoreio do sistema antigo, o confinamento permite, segundo o produtor, utilizar a área cultivável para produzir o próprio alimento na propriedade. “Tentamos ao máximo consumir o que produzimos aqui. Comprar de fora acaba se tornando caro. Apesar disso, acabamos por gastar mais todo ano, também por conta do custo para os prestadores que tem subido. Destes alimentos de fora, usamos só concentrados, como ração, milho moído e farelo de soja, ou caroço de algodão”, contou.
A principal mudança, no entanto, foi a inclusão de tecnologia no dia a dia da propriedade, que fica na localidade de Capela do Rosário, no interior de Ibiraiaras.
“O sistema confinado exige mecanização. São equipamentos modernos, com melhor eficiência e que proporcionam um maior retorno sobre a mão de obra investida do que o sistema a pasto”, completou.
Custo alto e preço baixo justificam abandono
Necessidade de elevar a qualidade do leite demanda gastos constantes em estrutura, mas setor reclama que ganhos não acompanham

Suplementação do rebanho leiteiro tem pesado no bolso do produtor | Foto: Alcides Okubo Filho/Embrapa/Divulgação/CP
O produtor de Ibiraiaras, Elias Spada, avalia que para obter bons resultados na propriedade leiteira é preciso investir na mecanização. Ele aponta ainda que existem desafios inerentes ao investimento em maquinário, principalmente relacionados ao custo dos equipamentos, importação de peças e incentivos. “O custo fixo vai diluindo conforme tu aumentas a quantidade de animais e melhoras a produtividade. Muitos acabam tendo que desistir por não conseguir investir”, falou.
Atualmente, Spada contabiliza que o custo de produção está entre R$ 2,00 e R$ 2,10 por litro de leite. Na comercialização, a propriedade tem recebido acima de R$ 2,60. O valor, entretanto, costuma variar de acordo com a região. “Mas tem o custo de depreciação. Eu sempre digo que existe um fluxo de caixa muito intenso. O movimento de dinheiro bruto é alto. Só que a gente gasta muito. Costumo brincar que, na prática, a gente só troca figurinha. Pega de um lado e paga do outro”, salientou.
Criada pelos pais, a propriedade de Elias Spada está em sua segunda geração. Com filhos pequenos, de 5 e 2 anos, ele conta que tem tentado inseri-los aos poucos nas atividades para seguirem a paixão pela atividade da pecuária de leite. “É algo cansativo e desgastante. Mas quando somos criados no meio das vacas, isso se torna recompensador. É gratificante quando você consegue ver que o negócio está dando bons resultados”, celebra.
Infelizmente, para alguns, essa realidade é um pouco diferente. No lugar dos bons resultados, a pouca margem de lucro, a necessidade de investimentos em mecanização e o endividamento fazem com que parte dos produtores desistam.
“Tem muitos que se obrigam a seguir porque têm investimentos a pagar. Tem aqueles que desistiram por falta de sucessão ou falta de incentivo. Aqui na região tem produtores que buscaram outras atividades, como o plantio de hortifrutigranjeiros. Viemos de duas ou três safras não boas, com aumento de custo no alimento. São situações bem complicadas, que não são exclusivas do leite”, concluiu Spada.
Para Marcos Tang, presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do RS (Gadolando) e presidente da Federação Brasileira das Associações de Criadores de Animais de Raça (Febrac), alguns fatores explicam essa nova realidade do setor leiteiro do Rio Grande do Sul. Entre eles, o produtor e dirigente de entidades aponta: adaptações normativas, consumo abaixo da média mundial, necessidade de investimentos em maquinário de alto valor agregado, condições climáticas desfavoráveis, aumento no custo do alimento, dificuldade no acesso a crédito e sucessão rural.
Segundo Tang, o setor hoje possui mais e melhores vacas em termos de produção. Entretanto, o número de propriedades que emite nota fiscal mensal caiu de quase 85 mil para cerca de 29 mil. “Se é bom ou ruim, do ponto de vista socioeconômico é um problema por tantos (produtores) terem saído da atividade. O que estão fazendo? Como estão ganhando a vida? Apesar de uma atividade de muito fluxo, é também muito trabalhosa”, considerou.
Sobre os fatores que explicam a nova realidade, o dirigente reforça que são interligados. A necessidade de adaptações para que as propriedades atendam as normativas de qualidade e segurança sanitária, fato celebrado e apoiado pelas próprias entidades conforme Tang, refletem em cada vez mais investimentos em mecanização. Contudo, ele aponta que, mesmo com uma produção alta, sendo o terceiro estado que mais produz leite no Brasil, o Rio Grande do Sul consome apenas 30% do leite gaúcho.
“Os tanques e demais maquinários não custam R$ 10 mil ou R$ 20 mil. Custam mais que isso. As linhas de crédito são muito burocratizadas. Quase nenhum produtor consegue pegar. Quando tu te enquadra, o máximo que consegue pegar é R$ 250 mil. Em uma propriedade, esse valor some em um sopro. O investimento para manter a produção de leite com toda essa qualidade para a indústria foi alto demais e muitos tiveram que repensar”, afirma.
As condições climáticas desfavoráveis também refletiram em maior custo para os produtores. Tang entende que a baixa produção de alimento para as vacas fez com que muitos criadores precisassem realizar aportes para a compra de rações para os animais. “Foram cinco anos de estiagem intercalados com enchentes. O produtor que teve que fazer financiamentos para comprar máquinas também teve que fazer dívidas para comprar comida para as vacas. Se quer saber quanto um produtor de leite está devendo, basta ver o quanto de comida ele teve comprar a mais nos últimos anos. Essa é a dívida atual”, diz.
Apenas na Gadolando, o presidente estima que cerca de 20 produtores deixaram de trabalhar na atividade nos últimos anos. Na propriedade de Tang, em Farroupilha, na Serra Gaúcha, o custo de produção do litro de leite varia entre R$ 2,20 e R$ 2,30, com o preço de referência para venda em R$ 2,37 (em setembro). “A maioria ganha um pouco mais que isso, mas ainda está muito apertado. O custo está alto. Ainda estamos muito reféns da dificuldade de produção de alimento para nossas vacas devido ao clima”, reforça.
Para Tang, o valor mais justo para ser pago ao produtor de leite seria na casa dos R$ 3. “Muito em função do valor que o consumidor já tem pago no dia a dia nas gôndolas de mercado”, explica.
“Então tudo isso conjugou para que famílias chegassem, nos últimos anos, no pensamento em continuar na atividade ou não. E aí vem a questão da sucessão rural. Se os pais só reclamam que está ruim, como que o filho vai querer seguir na atividade?”, questiona o presidente da Gadolando.
Sucessão familiar está associada à tecnologia
Recursos como ordenha robótica e softwares de controle da produção, por exemplo, agradam os jovens e podem estimular permanência na propriedade

Ordenha de leite no Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio | Foto: Fernando Dias / Seapi / Divulgação
O presidente da Gadolando, Marcos Tang, acredita que há um caminho para driblar o desestímulo do jovem em prosseguir com a atividade leiteira familiar: o incremento tecnológico da propriedade. “A atividade está muito ligada à inovação. Com a tecnologia robótica, o produtor tem aplicativos de controle e planos no celular, como a produtividade da ordenha. São coisas tecnológicas que o jovem gosta”, reflete o dirigente.
Tang aposta que os produtores que pretendem seguir na atividade devem trabalhar baseados no autoconhecimento e na informatização. “Em 10 anos, tínhamos 70 a 80 litros por propriedades que vendiam leite. Atualmente, estamos perto dos 500 litros por propriedade. Evidentemente que isso é uma escala. O futuro estima vacas cada vez mais produtivas, mais conhecimento e tecnologia associados e escalas maiores. É a tendência ao incorporar tecnologia e inovação, saindo do tirador de leite para o produtor com alto profissionalismo”, analisa.
Para o presidente do Sindicato Rural de Erechim e coordenador adjunto da Comissão do Leite e Derivados da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Allan Tormen, a produção de leite no Estado tem andado de lado, com estabilidade nos volumes obtidos. Entretanto, ele destaca o crescimento exponencial quando o fator analisado é a produtividade de fato. “Se pegar o número de propriedades e de vacas ordenhadas, ambos caíram. Isso quer dizer que o produtor que está mecanizado, com um sistema de produção ajustado e com um manejo eficiente, está conseguindo sobreviver”, salienta Tormen.
O dirigente entende que os dados apontados no Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite , produzidos pela Emater/RS-Ascar refletem não apenas a realidade do setor no Estado, mas também de outras regiões reconhecidas pela atividade de pecuária de leite. “Se pegar os dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), é possível ver que a produção de leite tem uma curva parecida nos principais estados produtores de leite, como Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e RS”, pontua.
O cenário, segundo o dirigente, é similar também ao que vem acontecendo nos Estados Unidos, com redução significativa de propriedades e animais ordenhados, mas com crescimento considerável na quantidade de leite produzido. “É um movimento que tem acontecido também no mundo todo. Não me causa espanto de acontecer aqui. A preocupação é com o produtor que não consegue se manter na atividade”, destaca.
Por isso, Tormen defende uma melhor disponibilidade de políticas públicas para o setor, principalmente no aporte de recursos para produtores rurais investirem na mecanização de suas propriedades.
“As políticas (públicas) para a pecuária de leite são as mesmas do Plano Safra já fragilizado e que tende a ter cada vez menos recursos do governo federal. Vemos isso como uma preocupação. A melhor política pública para o leite é ajudar o produtor a ter competitividade, fazendo com que ele consiga acessar mais crédito para a transferência de tecnologia”, observa.
Como perspectiva para o futuro do setor, o dirigente aponta que o primeiro passo é atender toda a demanda interna.
Atualmente, o Brasil precisa importar de 3% a 5% de leite para atender o mercado nacional. Assim que atingir a demanda interna, Tormen entende que será necessário adequar o setor e os agentes políticos e privados para que o Brasil passe a se tornar um exportador de leite para outros mercados, principalmente para o leste asiático.
“Quando nos tornarmos superavitários, vamos começar a ter o sapato apertado. Então, acho que o governo deveria dar atenção a uma política de exportação. Além disso, quem colocaria o leite para fora do Brasil seria a indústria, e não o produtor. Do jeito que está crescendo a produção, vamos atender a demanda interna em 5 a 10 anos”, diz. Segundo ele, se o país não tiver uma porta aberta para o mercado internacional quando atingir o superávit de produção, enfrentará uma dificuldade interna de preços muito grande. “Quem precisa puxar esse cenário de exportação são os três estados do Sul: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul”, finaliza Tormen.
Fonte: CP