Empobrecimento, salários e juros: os efeitos da inflação de dois dígitos
A volta de uma inflação anual de dois dígitos após mais de 5 anos tem consequências diretas não só para o bolso do brasileiro, mas também nas perspectivas para o emprego, renda, crédito e crescimento da economia.
A inflação calculada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerada a inflação oficial do País, atingiu 10,25% no acumulado em 12 meses, a maior taxa anual desde fevereiro de 2016, quando ficou em 10,36%.
Em termos práticos, inflação nada mais é do que a desvalorização do dinheiro. E o efeito mais imediato da disparada dos preços é o empobrecimento da população e o encolhimento da renda obtida.
Economistas explicaram as causas da escalada inflacionária, os efeitos do rompimento da barreira simbólica dos 10% e os impactos do aumento generalizado dos preços na economia e na vida do brasileiro.
Tragédia
“É mais que uma barreira psicológica, é uma tragédia mesmo. Quando chegamos a uma inflação de dois dígitos, há uma pressão muito forte para reajustes e para indexação da economia”, afirma Carlos Honorato, economista e professor da FIA e Saint Paul.
Honorato destaca que o brasileiro ainda tem uma “memória inflacionária” e carrega no DNA o “medo da inflação”.
“Em uma inflação desse tamanho, o consumidor não consegue mais substituir um bem por outro, e isso é a expressão mais clara do empobrecimento das famílias”, afirma o economista Robson Gonçalves, professor do Instituto Superior de Administração e Economia da Fundação Getúlio Vargas (ISAE/FGV).
“As pessoas estão com dificuldade de comprar o básico porque estão pagando a energia elétrica mais cara, por exemplo”, prossegue.
O momento atual de inflação nas alturas é ainda mais grave em virtude do desemprego ainda elevado enquanto a economia segue em ritmo fraco de recuperação. A taxa de desemprego no Brasil ficou em 13,7% no trimestre encerrado em julho, menor taxa no ano, mas que ainda atinge 14,1 milhões de pessoas.
Apesar dos desarranjos provocados pela pandemia nas cadeias produtivas e da alta nos preços internacionais das commodities, os economistas destacam que a escalada da inflação no Brasil tem causas predominantemente domésticas.
“Um país que tem dois dígitos de desemprego e de inflação é porque tem outra causa provocando isso. Na raiz desse problema está a taxa de câmbio brasileira. O real é uma das moedas que mais se desvalorizou na pandemia”, diz Gonçalves.
Em 2020, a moeda americana subiu 29% em relação ao real. Neste ano, a alta é de mais 6,34%, rompendo o patamar de R$ 5,50 pelos números do fechamento de mercado da última semana. Em boa parte, a instabilidade política é uma das principais responsáveis pela cotação do dólar, como explica o economista da FGV.
“A falta de diretriz da política econômica e a crise política crônica explicam o dólar muito alto. Já deveria estar abaixo de R$ 5 há alguns meses. Indicadores de inflação e desemprego deveriam estar de lado opostos de uma gangorra e não subindo ao mesmo tempo”, diz.
Arrocho salarial
A avaliação geral do mercado é que a inflação tende a ceder ao longo dos próximos meses, favorecida por uma menor pressão dos preços de alimentos e pela elevação na taxa básica de juros.
Para o economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, a inflação no Brasil sofre, sim, de efeitos gerais que afetam todo o mundo — caso do aumento do preço das commodities no mercado internacional —, mas há um impacto adicional de um “descontrole fiscal e político” que aumenta a depreciação cambial.
“O Banco Central tem que subir juros mais do que outros países porque a política não trabalha junto para equilibrar uma situação fiscal muito ruim, com dívida que deve chegar a 85% do PIB ano que vem e déficit ainda acima de 1%”, afirma Vale.
O mercado projeta atualmente uma Selic em 8,25% ao ano no fim de 2021, mas parte dos analistas já avalia que a taxa básica de juros deverá superar o patamar de 9% em 2022.
Juros mais altos, significam crédito mais caro, menos investimento, mais freio para o Produto Interno Bruto (PIB) e salários mais achatados.
Mo mês passado, a atitude do presidente Jair Bolsonaro nas manifestações de 7 de setembro elevaram o grau de incerteza na economia e bagunçaram os indicadores. Além de elevar o dólar, crises políticas como essa diminuem a probabilidade da aprovação de políticas públicas no Congresso.
A última “cartada” do governo foi atribuir o aumento da inflação às medidas de restrição contra a propagação do coronavírus. Do ponto de vista econômico, o raciocínio não faz sentido porque a restrição de circulação é uma medida que reduz o consumo e derruba os preços.
No Brasil, como mostra o IBGE, dos 10,25% de alta da inflação em 12 meses, a gasolina foi o item individual com o maior impacto. Ela representou 1,93% sobre o indicador geral. Ou seja, da taxa de 10,25%, quase 2% são do combustível. Os maiores impactos depois dela vieram da energia elétrica (1,25%), das carnes (0,67%) e do gás de cozinha (0,38%).
Todos são itens altamente influenciados pelo dólar. A energia elétrica tem como motor a pior crise hídrica em mais de 90 anos. Ainda que seja um fenômeno natural, a gestão do governo federal foi amplamente criticada por especialistas.
“A culpa da inflação é variada, mas tem, como foco principal, o governo. Outros países pararam muito mais do que a gente e não estão com inflação de 10% como o Brasil”, diz Vale.
A meta central do governo para a inflação em 2021 é de 3,75%, e o intervalo de tolerância varia de 2,25% a 5,25%. No final de setembro, o BC elevou de 5,8% para 8,5% sua estimativa de inflação para o ano, admitindo oficialmente o estouro da meta.
Sem boas perspectivas
Para a inflação em 2021, a expectativa é, atualmente, de 8,51%, ainda de acordo com a pesquisa Focus do BC. Para 2022, a projeção está em 4,14%. Os economistas alertam, porém, que, apesar dos indicativos de desaceleração, o cenário dificilmente será de alívio para o ano que vem.
“Vai ceder porque as pessoas não estão mais com poder de compra. E, infelizmente, os reajustes salariais que vão vir não compensam essa inflação. O processo de empobrecimento não retrocede”, afirma Gonçalves.
Vale sempre lembrar, que os mais pobres, que gastam a maior parte da renda com a compra de produtos básicos, são sempre os mais prejudicados pela inflação acima da meta estabelecida.
Não bastasse, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que mede a inflação de famílias que ganham de 1 a 5 salários mínimos, está ainda mais alto que o IPCA. No ano, o indicador acumula elevação de 7,21% e, em 12 meses, de 10,78%.
“É um cenário de continuidade do arrocho. Vamos ter que aumentar os juros, o que irá diminuir o investimento e aumentar desemprego. Vai dificultar o crédito, o acesso à moradia, as taxas de financiamento imobiliário vão subir, e isso desestimula a construção civil, criando o ciclo vicioso de economia estagnada”, afirma Honorato.
“Inflação é uma forma de distribuição de renda ao contrário. Não se pode deixar a inflação sair do controle. Quando você vê carro velho virando investimento, temos um problema. Quando você compra um carro velho e vende ele mais caro, é um sinal claro de que a inflação está voltando forte”, prossegue o professor.
Fonte: O Sul