Réu da Kiss: ‘Ainda ouço sons e vejo imagens da tragédia todos os dias’
O incêndio na boate Kiss, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, um início de domingo, em Santa Maria, cidade de 300 mil habitantes na região central do Rio Grande do Sul, distante 290 quilômetros de Porto Alegre, a capital o estado, deixou 242 mortos e 680 feridos, a maioria suprema de jovens universitários. Foi a segunda maior tragédia do país em número de mortos como consequência de fogo e fumaça. A quinta considerando todas as causas. A terceira do mundo em casas noturnas e a maior do país nos últimos 50 anos.
O início do julgamento do caso, que deverá consumir pelo menos 12 dias e se tornar o maior da história gaúcha, está marcado para o próximo dia 1º de dezembro, em Porto Alegre. Dos 28 apontados como possíveis responsáveis pelas investigações policiais, 16 foram indiciados. Destes, quatro acabaram admitidos pela Justiça como réus e irão ao tribunal.
Um deles é o hoje DJ Luciano Augusto Bonilha Leão. Nascido e criado em Santa Maria, 43 anos, Luciano, como pede para ser chamado, foi definido no processo como produtor da banda Gurizada Fandangueira, que fazia o show da noite, muito popular na cidade e região até ser desfeita após a tragédia.
Ele comprou, uma semana antes, em uma loja da cidade, o sinalizador de fogo de artifício que, aceso no palco, e na mão do vocalista da banda, Marcelo Jesus dos Santos, outro dos quatro réus, levou fogo ao revestimento de espuma do teto da Kiss, gerando o gás cianeto que matou a maioria dos jovens por asfixia e paralisia respiratória.
Além de Luciano e Marcelo Santos, os dois sócios da Kiss, Elissandro Callegaro Spohr, o Kiko, e Mauro Londero Hoffmann, estarão no banco dos réus no próximo dia 1º. Os quatro são acusados pelo Ministério Público de homicídio simples com dolo eventual (quando se assume o risco de matar) por todos os mortos, além de tentativa de homicídio por todos os feridos.
Nesta entrevista exclusiva ao R7, de uma hora, concedida na quarta-feira (17) no apartamento onde mora, em um condomínio popular do bairro Medianeira, em Santa Maria, Luciano enumerou seus argumentos de defesa.
Alega que, ao contrário do apontado no processo, jamais foi produtor da banda. “Não sei cantar. Não toco qualquer instrumento. Como seria produtor? Nunca participei de qualquer ensaio musical, fotográfico, reunião ou negócio da banda. Ganhava a vida como motoboy e, nas horas vagas, trabalhava de faz tudo do gaiteiro (sanfoneiro) do grupo, Danilo Jaques, que morreu na tragédia. Ia ao banco, trabalhava de roadie nos shows, comprava coisas a pedido dele”.
O DJ revela um dado curioso. “Se eu disser que recebi apenas R$ 50 de cachê naquela noite você acredita? Eu não passava de um freelancer de serviços gerais. Qualquer outro poderia estar no meu lugar na ocasião. Não tinha qualquer cargo”.
Luciano nega ainda a acusação, reforçada pelo vendedor da loja dos artefatos, de que teria comprado um sinalizador para uso externo, mais barato, em vez dos utilizados em áreas internas, por vontade própria, para embolsar mais dinheiro no troco.
Emocionado, o DJ chorou algumas vezes durante a entrevista – concedida com a camisa de malha verde usada na madrugada fatídica apertada nas mãos. Disse estar separado há cinco meses da mulher, a professora Fátima Varas, e mostrou calmantes, ansiolíticos e remédios de pressão que passou a tomar, receitados por um psiquiatra.
“Sou um sobrevivente transformado em réu”, lamenta em um dos momentos de lágrimas. “Por muito pouco não saí da Kiss entre os mortos. Não mando na cabeça de ninguém. Que cada um tire suas conclusões e a Justiça decida pelo melhor. Mas pelo amor de Deus: que tudo isso acabe logo. Os pais desses meninos, como eu, não aguentam mais de sofrimento e ansiedade. Eu, os pais, os moradores da cidade, envolvidos ou não, todos precisamos de uma sentença, um ponto final, para tentar recolocar a vida em normalidade”.
Acompanhe a entrevista:
O senhor comprou o sinalizador externo, mais barato, conscientemente, para sobrar mais dinheiro no bolso?
De jeito nenhum. Maldade, a começar pela acusação do vendedor da loja onde comprei o sinalizador. Só pode ter dito isso para evitar que a Justiça suspeitasse de alguma sugestão dele na venda ou algo do tipo. Comprei aqueles produtos mais ou menos uma semana antes, junto com outras coisas, a pedido do Danilo (Jaques, gaiteiro da banda Gurizada Fandangueira). Como em todas as ocasiões, levei um bilhete escrito por ele, entreguei ao vendedor, paguei, peguei o pacote, fui embora e entreguei. Não escolhi o produto A, B ou C. Simplesmente entreguei a lista e pedi o que estava escrito.
O relato do vendedor deixou também a suspeita de que o senhor teria pedido nota fiscal em valor maior do que o da compra…
Mais um absurdo. Sou uma pessoa honesta, sincera. Quem me conhece sabe. Por isso me deram oportunidade de voltar a trabalhar e a andar de cabeça erguida. Não iria me sujar por uma bobagem desta. Uma crueldade que será desmascarada no julgamento por minha defesa.
Conte direitinho, em detalhes, o que aconteceu naquela madrugada.
Eu estava ao lado do palco, mais para fundo. O Marcelo (Santos, vocalista da banda) acendeu o sinalizador e, logo depois, o fogo pegou em um pedaço da espuma que revestia o teto. Ficou uma chama azul… O Marcelo então pegou o extintor de incêndio e tentou acionar. Ele apertava a maçaneta da válvula de saída, ela mexia, parecia acionada, mas não saía nada.
O extintor estava vazio?
Não posso afirmar isso porque não cheguei a segurá-lo. Não tenho condição de dizer se era falta de carga ou problema na válvula de saída, mas o fato é que Marcelo apertou e não funcionou. Aí joguei um pouco de água na espuma na tentativa de apagar. Veio muita fumaça, mas o fogo continuou a se expandir. Foi quando Marcelo virou para a gente e disse: “é preciso sair ou então todo mundo vai morrer… (Luciano chora)”. Posso te afirmar uma coisa: se aquele extintor funcionasse na hora que o Marcelo tentou, o fogo teria sido controlado a ponto de ninguém morrer. Eu estou certo disso.
E depois?
Com o fogo crescendo, fomos todos em direção à saída, que já estava lotada. Sim: os seguranças trancaram mesmo. Acharam no início que a meninada estava armando saída em bloco para não pagar a conta, coisa de estudante e tal. O pessoal berrava para abrirem a porta, mas nada. Eu estava atrás de muita gente e a fumaça pegando. Bati em uma barra de ferro que não consegui cruzar e muita gente caiu sobre mim. Estava quase desmaiando quando cobri o rosto com a camisa que usava (mostra a peça) e, logo depois, alguém me puxou para fora. Ainda não sei quem foi esse enviado de Deus. Gostaria de saber, para dar um abraço forte.
O que fez assim que o tiraram da Kiss?
Melhorei um pouco e passei a ajudar a tirar os jovens da boate. Pegava quem estivesse na frente, com outras pessoas, sempre na esperança de encontrar o Danilo. Por volta das cinco da manhã, o técnico de som da banca me disse: “se quiser continuar, fique, talvez seja bom ir descansar um pouco, mas fique sabendo: Danilo morreu (chora uma vez mais)”. Rapaz, se ele estivesse aqui seria o primeiro a dizer que sou inocente. Da mesma forma, seu eu arrumasse de morrer, hoje minha mãe estaria entre os pais pedindo justiça. Então penso que também sou vítima, mas me transformaram em réu.
Disseram que Danilo conseguiu sair da boate, mas voltou para pegar a gaita, ou sanfona, em vez de tentar socorrer pessoas, e só então ele também morreu. Verdade?
Não. Ele saiu uma vez só – e sem vida. Era um bom sujeito, verdadeiro, honesto.
O senhor e o vocalista Marcelo Santos não foram negligentes ao acender o sinalizador?
Ao menos no meu caso posso afirmar que não. Quando comprei o sinalizador, uma semana antes, não tinha a menor ideia de ondem, quando e como ele seria usado.
Verdade?
Sim. Danilo nunca me disse. E mesmo no dia do show não fui informado. Estava trabalhando nos fundos do palco. Fiquei sabendo pouco antes do início do show, quando vi a anotação em uma música do roteiro. Mas não tive qualquer participação na programação do roteiro, na decisão de usar o sinalizador e muito menos no uso.
O senhor diz ter sido procurado em 2020 por um pai que perdeu duas filhas na tragédia e o perdoou. Isso é verdade?
Sim.
Muitos na cidade acham que essa história é mistura de invenção com discurso ensaiado para tentar melhorar sua situação.
Não é isso e posso dar detalhes. Não me lembro exatamente do nome dele, confesso. Acho que era Clóvis. Ele é de Itaara, cidade próxima daqui. Um senhor simples. Ganhou a casa onde mora da família. Mandou me chamar e fui lá. Quando estava entrando, ele disse: “pare aí”. Pensei pronto: vai atirar, tentar fazer alguma coisa comigo, me matar, né? Ele disse: “você veio só porque quer perdão ou vai dizer verdade”. Disse que falaria a verdade e ele respondeu: “se você pedisse perdão iria te mandar voltar de onde estava”. E me deixou entrar. Conversamos, voltei para casa e foi isso.
O senhor usou fogos de artifício em alguma festa como DJ depois do acidente?
Não. Nunca preparei e me recusei a acionar coisas montadas por outros. Numa dessas ocasiões, o pessoal da loja onde comprei o sinalizador, para você ver, montou uma linha de fogos em um desfile de uma turma de designers formados numa universidade privada local e pediu para eu acender. Disse não, claro, e deixei o negócio por lá.
Adquiriu algum problema psicológico ou de saúde após a tragédia?
Não durmo com luz apagada. A escuridão deixou traumas e ainda me apavora . Todo dia escuto o barulho daquelas horas. Parece o som de uma estrebaria, de animais agitados tentando andar, sei lá… Penso isso o dia inteiro – e à noite, muitas vezes, sonho. Tive tosse forte e falta de ar, inclusive durante a prisão, mas lá ninguém cuidou de mim. Às vezes vomitava algo escuro. Fiz terapia psicológica e depois fui atendido pelo psiquiatra Gustavo Salvatti. Tomo Clonazepam, para transtorno de ansiedade, e remédios para pressão arterial. Fiquei hipertenso.
O senhor esteve preso logo depois do incêndio.
Sim. Por 120 dias. Fui solto em 30 de maio de 2013. A primeira coisa que fiz foi beijar a porta de casa. A Justiça alegou que eu planejava escapar da cidade. Rapaz, fui preso no velório e enterro de vários daqueles jovens, dezenas de horas depois. Velório e enterro (eleva a voz e chora de novo). Fui o único dos quatro réus a ir ao velório. Como estaria fugindo se fui preso em velório, ao lado das vítimas, meu Deus? Aliás, até hoje sou o único dos quatro réus que continua a tocar a vida normalmente aqui. Ando pela cidade, trabalho e convivo normalmente com as pessoas.
É mesmo? Como foi a passagem de motoboy a DJ?
Era um sonho antigo, realizado meses depois da prisão. Ao contrário dos que se esconderam, atravesso a cidade andando sem ser incomodado ou agredido. Faço meus trabalhos na cidade e convivo com as pessoas de cabeça erguida. Toco em festas, casamentos, formaturas, bares, eventos institucionais e empresariais. Hoje mesmo pedir para vocês chegarem um pouco mais cedo do que havíamos combinado porque me chamaram para fazer o som de um encontro aqui em Santa Maria. Sabe qual foi a primeira festa em que toquei como DJ?
Não faço ideia.
Foi a de formatura de uma turma de Direito, em 2014, num hotel bacana daqui de Santa Maria. Com um detalhe: colocaram ao meu lado, bem próximo, uma mesa com todos os delegados da investigação que culminou com o meu apontamento e, em seguida, o indiciamento. Olhe só. Mas trabalhei normalmente.
O senhor se separou de sua mulher há cinco meses.
Isso. A Fátima é uma mulher de fibra, ótima professora. Tem vínculos municipais e estaduais. Sempre teve renda maior do que a minha. Eu fazia esses trabalhos extras justamente para chegar perto, não deixar o peso maior nas costas dela. Mas ela não suportou a pressão. Hoje moro sozinho neste apartamento. Pago R$ 600 de aluguel. Meu casamento derreteu, mas ao menos hoje consigo dormir um pouco mais, porque ao lado dela, com toda a preocupação, não conseguíamos. Minha mãe, Maria Odete, e as duas irmãs, Karina e Bruna, de 29 e 24 anos, também sofrem muito. Ainda era menino quando meu pai morreu.
Perdeu algum trabalho ou oportunidade após ter sido indiciado e virado réu?
Quem não me quer perto na cidade nem entra em contato. Que eu saiba, uma só vez. Um shopping da cidade, o Royal, desistiu de me contratar para tocar porque empresários ligados a eles, ou com negócios no espaço, que perderam filhas na tragédia, não me queriam lá.
O senhor acha que será condenado? E quanto aos outros três réus?
No ano passado, fui fazer um trabalho em Bagé, no sul do nosso estado. O motorista enviado por quem me contratou não me reconheceu na ida. No caminho, o assunto caiu no julgamento e ele disse: “para mim devia ser condenado quem comprou o troço”. Fiquei quieto. Horas depois minha foto apareceu na tevê de um restaurante enquanto almoçávamos um ao lado do outro. Ele me identificou e, constrangido, pediu-me desculpas. Disse: “esqueça. Cada um tem direito de pensar como achar melhor”. Sei que nem todos concordarão, mas acho que serei absolvido. Na minha avaliação, sou um inocente que, como disse, passei de sobrevivente a réu – aliás, muitos outros deveriam estar lá, escalados como réus, mas não estão. Para mim, esta talvez seja a maior injustiça de todo esse processo.
Fonte: R7